Tríptico: vidas inautênticas, painel final — Guerra civil canibal
Todo tríptico tem três partes — independentes, mas conectadas por um motivo comum. Foi assim que imaginei esta série de três posts, cada qual abordando um aspecto disto que chamei de “vida inautêntica”: um modo de viver a vida que trai os próprios valores segundo os quais aparenta querer se ordenar. A vida inautêntica consiste, então, em fazer compromisso com valores e regras de conduta que, embora usados para regular e julgar a vida alheia, frequentemente se depara com situações em que estes critérios são “suspensos” em vez de levados às últimas consequências; ou em vez de aplicados a toda a extensão dos integrantes da comunidade em que deveriam vigorar, admitem “brechas” e “excessões”, revelando assim critérios “ocultos” que governam sem ser explicitados, pois se o fossem comprometeriam a aceitação dos critérios explícitos. A vida inautêntica, ao se revelar como intrinsecamente contraditória e incapaz de atender plenamente aos próprios critérios, deixa ver porque não pode romper com eles e converter-se numa vida autêntica, em que seus valores ou são cabalmente aplicados a todos, ou são valores mais brandos e aplicados de forma explicitamente mais frouxa: é que se trata de um mecanismo de controle. No primeiro dos três posts abordei a maneira como tratamos a noção de verdade, no sentido de que todo mundo fala na verdade e afirma seu lugar central em nossas vidas, mas na realidade ninguém quer encarar a verdade e prefere falsidades confortáveis. No segundo, falei da moralidade inautêntica, de como sua aplicação é sempre parcial e contraditória, e de como produz sofrimento e perseguição, e que seria melhor se reconhecêssemos nossa incapacidade de seguir regras tão arbitrariamente duras e fôssemos mais generosos uns com os outros. Neste terceiro post, minha ideia é tratar do campo da política, no sentido mais estrito dos eventos, discursos e reviravoltas que temos vivido nos mais recentes anos.
A ideia me veio em setembro do ano passado, quando ainda estávamos experimentando o impacto inicial do governo Bolsonaro. Tínhamos saído atordoados das eleições, e o que se chama de modo um tanto vago de “esquerda” estava ainda tateando, procurando se recuperar de uma vitória tida como certa que não aconteceu, e reativando estratégias de enfrentamento que caracterizaram o pós-golpe, o interregno do governo Temer. Parece uma obviedade falar em inautenticidade no âmbito da Política, aí onde tudo o que se diz (e tudo o que não se diz) interfere na realidade mesma em que se pretende atuar, modificando o objeto e as ações pertinentes enquanto se fala sobre ela. Isto torna os atos locutórios e perlocutórios da política dotados de múltiplas camadas, de sorte que sempre há segundas, terceiras, múltiplas razões por detrás daquelas que nos são oferecidas como “valor de face”. Reclamar disto parece até ingenuidade, coisa de quem não entendeu as regras segundo as quais o jogo da Política é jogado. Mas o que me motivou é algo mais subterrâneo que esta constatação superficial, é algo que foi se acumulando, formando sedimentos que se depositaram em mim à medida que passávamos de momento a momento. Muitos fatos, muitas reviravoltas ocorreram em pouco tempo, de modo que não conseguirei lembrar de todas aqui, mas tentarei recuperar as mais relevantes.
Eu poderia recuar até a segunda eleição de Dilma Roussef como primeiro momento a partir do qual minha desilusão com a Política começou. Mas estes tempos e o que se sucedeu até o golpe de 2016 foram alvo de muitas postagens aqui, então vou saltar para o período do governo de Michel Temer. Naquela época a grande maioria da esquerda tinha aceitado o golpe, seja por negar sua ocorrência, seja por haver desistido de lutar contra ele. Todos depositavam suas fichas nas próximas eleições, e a fraqueza do governo Temer parecia garantir que qualquer retrocesso seria facilmente revertido com o retorno rápido da esquerda ao poder. Naquele momento Lula concentrava as esperanças da maioria do eleitorado, o que significa que teríamos de novo como presidente nosso político mais popular e habilidoso, dotado de respaldo e autoridade para costurar outro acordo de classes. Naquele momento, era tudo que queríamos: todos os matizes do espectro político falavam em pacto de reconstrução nacional, em oposição à crescente polarização. Mas aos poucos vimos a parcela dos até então “gatos-pingados” da extrema-direita crescer e contar com a adesão de parcelas da classe média cada vez maiores e mais despudoradas de se assumir como fascistas, pedindo abertamente intervenção militar e retorno da ditadura. O que parecia piada foi se tornando sério, enquanto a Lava Jato ameaçava prender Lula. De forma inexplicável para quem não vivenciou aqueles tempos, tanto a extrema-esquerda quanto parte da esquerda (exatamente a que se dizia mais à esquerda ainda que o PT) apoiaram a Lava Jato, e mesmo com várias mobilizações e promessas de resistência dos militantes, Lula acabou se entregando. Ao que se seguiu um movimento que repudiava a realização de eleições sem a participação do candidato mais popular e o legítimo representante da vontade da maioria do eleitorado. Afinal, democracia deveria ser isso, governa quem representa os interesses da maioria. Eleição sem Lula era fraude, dizíamos todos na época.
Pois bem, esta palavra de ordem foi logo abandonada, e substituída por Haddad e Manu. Uma chapa sem chances de vencer, cuja vice insistia em vestir uma camisa com os dizeres “Lute como uma garota”, o que deixava claro que não se dirigia à Nação, parecendo mais uma adolescente disputando a eleição do DA da graduação em Ciências Sociais. Nem como “mulher” ela se colocava, mas como uma “garota”, juvenil. Mesmo assim a esquerda nos fez acreditar nesta chapa e gastar nossas energias em tentar fazê-la ganhar credibilidade, pois como se dizia antes, o apoio de Lula elege até um poste. Mais importante era o terror com que se alimentava nossos imaginários: esta seria a eleição do Fim do Mundo, do Apocalipse, Bolsonaro seria a Besta-Fera, o inominável, aquele de quem sequer o nome poderia ser pronunciado. Parecia que se Haddad-Manu perdesse, o Brasil acabaria num inferno, com demônios fascistas matando as pessoas em praça pública. Dava pra sentir o clima de terror nas pessoas, como eu comentei neste post aqui. Nessa época algum gênio deu a ideia de chamar Bolsonaro de Bozo, Coiso, Biruliro e tantas outras infantilidades tão risíveis e inócuas quanto o movimento “Ele Não” que supostamente seria o fruto do repúdio das mulheres à sua candidatura. Como se essa suposta unidade das mulheres tivesse alguma substância real e não passasse de um embuste que juntava num mesmo saco gatas tão distintas quanto Simone Tebet e a própria Manu.
Enfim, nada deu certo, Bolsonaro ganhou, pois como todos sabíamos, “eleição sem Lula é fraude”. Mas o que fez a esquerda a partir daí? Fugiu pra Paris, como ouvi alguns mais bem posicionados dizerem que fariam se o “Bozo” ganhasse? Não, ficaram todos aqui, agora com a palavra de ordem de “resistir”. A ideia agora seria tentar botar o fascismo na linha, como se isso fosse algo razoável de se propor. De fato alguns mais sensíveis ou vulneráveis acabaram se “auto-exilando”, talvez inspirados pelo imaginário da época da ditadura de 64–84. Mas a esquerda passou a oscilar entre as tarefas de ridicularizar e fazer memes com as bizarrices das figuras incompetentes que compunham o novo governo (como se eles pretendessem ser competentes e se importassem com as críticas dos derrotados), e a tarefa de apoiar a direita e repreender a esquerda toda vez que esta fizesse críticas “politicamente incorretas”, como vimos a própria Manu fazer ao vir a público falar em defesa da Damares. Em vez de reconhecer a fraude levada a cabo por Moro e o TRF-4, que levou ao poder um candidato que todos sabem que não representava o desejo da maioria da população, e que declarou explicitamente que não governaria para a maioria, a esquerda embarcou no discurso de que a culpa era das fake news, que devíamos adotar enfrentamentos locais, criticando este ou aquele ministro, sem pedir o impeachment do governo como um todo. Como se a substituição de ministros fosse impedir que o governo do apocalipse deixasse de cumprir a função para a qual foi conduzido ao poder: atacar os direitos dos trabalhadores, entregar as riquezas do país a potências imperialistas e desmontar o projeto de país autônomo baseado no nacional-desenvolvimentismo. De fato, enquanto vimos a exploração do pré-sal ser entregue a multinacionais e sua receita ser desvinculada dos gastos com educação, a base de Alcântara ser entregue aos EUA e a aprovação de reformas como a trabalhista e a da previdência, a esquerda parecia esperar que o governo caísse de podre sozinho. Que Bolsonaro fizesse o que nem Temer, sem legitimidade e sob ataque cerrado, fez: acordar um dia moralmente arrependido e amedrontado pelas críticas da esquerda, e renunciasse. Sem que ninguém tivesse que fazer esforço nenhum.
E depositaram as fichas no caso Queiroz, e durante muito tempo a pergunta “Cadê o Queiroz?” virou um mantra, uma fórmula mágica entre a esquerda, tão automática e banal quanto o “E o PT?” da extrema-direita. Veio então a Vaza Jato, com a promessa de trazer à luz do Sol as práticas ilícitas e as relações criminosas da Lava Jato. Confesso que senti minha esperança se renovar na época. Mas logo ficou claro que não ia dar em nada, porque esse governo não é feito de gente republicana que se envergonha de ir contra os próprios princípios. É que possuem uma tarefa histórica a cumprir, e não vão parar antes disto. Mas agora ficou cada vez mais difícil para uma parcela da esquerda continuar apoiando a Lava Jato; mesmo assim, volta e meia o próprio Haddad reafirma esse apoio. O que dá muito o que pensar: ou ele não compreende que foi o maior prejudicado por essa armação toda, e se não compreende é despreparado para cumprir a função de articulador e chefe de Estado; ou ele nunca teve reais chances de ocupar essa função e sua real tarefa era a de emprestar credibilidade ao pleito eleitoral. Uma vez eleita a extrema-direita, a tarefa da esquerda agora seria a de recompor o centro, ou melhor dizendo, reabilitar a direita, articuladora do golpe, que polarizou o país e viu seu eleitorado correr para os extremos. Daí o discurso de “união das esquerdas” que foi gradativamente se ampliando até resultar na Frente Ampla que inclui hoje os golpistas FHC, Luciano Huck e se deixarem, até mesmo o Moro. Ciro Gomes, que antes da prisão de Lula falava em invadir cadeia para retirá-lo à força e levar para embaixadas (claro, ele queria Lula longe do Brasil), dizendo-se de esquerda, mostrou quem era no segundo turno quando lavou as mãos e foi embora pra Paris. Depois disso passou um tempo longe dos holofotes mas retorna agora querendo ser o nome preferencial da Frente Ampla sem o PT, e acusando quem não o apoia de traidores. A esquerda se tornou tão fascista quanto a direita, chantageando e sequestrando o direito à divergência política sob pena de desmoralização. E a estratégia funciona, tanto mais quanto a circunstância da pandemia nos obriga a ficar em casa sem que o teste das ruas possa mostrar qual o peso efetivo em popularidade que cada fração da esquerda tem a contribuir.
Paralelamente a tudo isto, evoluía a retórica em torno da figura da Marielle Franco. Lembro de estar em auditórios lotados onde o grito de “Marielle presente” era unânime. Em algum momento foi usado como elemento de enfrentamento ao crescimento da extrema-direita, que se valeu fartamente desta polarização para atrair seus apoiadores, quebrando placas em comícios. Em outro, foi moeda de barganha contra o apoio ao PT, pois se Lula estava preso, Marielle tinha sido assassinada; cada um que lutasse por seus mártires — eu ouvi isso! Mas sabem como é a política, algum arranjo foi feito e os gritos de “Haddad-Manu” se mesclaram ao de “Marielle presente” durante o segundo turno. Passada a eleição, houve o retorno à tarefa de construir a figura da mártir, e da tentativa de fazer a esquerda como um todo (além do PSOL) acreditar que a investigação de seu assassinato seria suficiente para fazer cair o governo. Como se a polícia, a justiça, o STF fossem neutros e não tivessem dado provas abundantes em ocasiões anteriores de que participaram do golpe e eram sustentação a este governo recém-empossado. O PSOL tentara de há muito encontrar mártires, com Amarildo e tantas outras vítimas que a violência policial e as milícias produzem quase que diariamente. Mas Marielle tinha vantagens: era mulher, negra, favelada, lésbica. E política de esquerda, enfrentava as milícias. A heroina perfeita. Mas não morrera sozinha, seu motorista também morreu no atentado. O que tornava, pelo menos para mim, ridículo toda vez que diziam: “Marielle e Anderson, presente!”, porque está claro que o Anderson é um penduricalho aí; mas que não pode ser eliminado, porque fazê-lo seria considerar que sua vida importa menos que a de Marielle. O que efetivamente é um fato político: Marielle, não a pessoa, que não tem nada a ver com isso, mas a personagem que se tornou, tem utilidade política para os que se valem hoje de sua imagem. Anderson, não. É só mais um Amarildo, que calhou de estar no mesmo carro que Marielle. Então fui a uma universidade na Paraíba e vi na praça de alimentação que penduraram lá a placa da Rua Marielle Franco, que deveria estar numa rua do Rio de Janeiro. E soube que ela foi colocada em várias outras universidades, na porta de salas de professores, e muitos grupos de pesquisa decidiram “estudar” sua dissertação de mestrado, que agora se tornara um texto de extrema relevância. Marielle morta seria agora quem sepultaria o governo Bolsonaro, era uma mera questão de encontrarem seus assassinos. E lembro de voltar da Paraíba e saber que um deles, condecorado pelos Bolsonaro, tinha morrido no interior da Bahia, um estado governado pela esquerda, e mesmo assim a PM e a perícia não estabeleceram ligação alguma às altas esferas.
Desde então, outras figuras foram propostas pela esquerda com sucesso passageiro: Tábata Amaral e Greta Thunberg vêm à mente, mas a velocidade da política rapidamente deixa claro que não são o que pareciam, ou suas lutas são deslocadas por outras mais urgentes e caem no esquecimento. Gente que ajudou a contruir o golpe, como Reinaldo Azevedo, foi reabilitada pela esquerda; e outros como Felipe Neto foram catapultados à condição de vozes relevantes na arena das opiniões políticas. E enquanto a esquerda se enfurecia com Regina Duarte, Paulo Guedes e Ricardo Salles botavam bombas no bolso dos trabalhadores e passavam a boiada, nas palavras deles mesmos. Mas a ajuda viria de fora, o resto do mundo, escandalizado, faria sei lá o quê que iria resultar na interrupção deste governo, ou dos seus crimes; e o Nobel da Paz resolveria a situação de Lula. Era só clicar na petição online (todo dia me enviavam várias, cada uma com uma causa honrosa, pedindo pra compartilhar em minhas redes sociais) e torcer muito em casa. Esta série de eventos foi produzindo em mim um progressivo desengajamento, uma descrença generalizada e a sensação de que estávamos sendo manipulados pela própria esquerda para ficarmos em estado de espera indefinida, imobilizados, no aguardo de algum fato extraordinário que fizesse nossos inimigos de classe desaparecerem como num passe de mágica. Enquanto isso nos alimentavam diariamente com os novos escândalos da extrema-direita, a oportunidade de sorrir das suas tosquices, e uma infinidade inesgotável de análises e teorias capazes de justificar as escolhas de todos os personagens da esquerda, de manter sua credibilidade, mas que invariavelmente fracassavam na capacidade de prever o fim do nosso martírio. O resultado disso tudo foi que parei de acreditar na esquerda, nos analistas, parei de me interessar em falar de política, de participar do circo. E o adiamento indefinido deste post é mais um sintoma disto. O apocalipse chegara, e estávamos cozinhando num fogo brando, numa versão do Inferno que o retrata como um lugar de morte e apodrecimento lento, de putrefação e inação, em que forças malignas nos dominam sem que possamos esboçar reação. Como no terceiro painel do tríptico de Bosch; como é retratado nas pinturas medievais o que acontece durante o Apocalipse, este que começa depois que o Inimigo da humanidade chega ao poder.
E eu teria permanecido assim, se as circunstâncias não tivessem se alterado recentemente, não naquilo que faz parte do jogo de espelhos da política, mas em questões determinantes, capazes de deixar a nu o caráter inautêntico das intenções dos agentes políticos que vêm atuando como represas, como camisas de força das energias sociais. A primeira foi quando ocorreu a votação da privatização da água, e boa parte dos que constituiriam a Frente Ampla votou contra o interesse da população e aprovou mais uma vez que multinacionais como a Coca-Cola e a Nestlé se apropriem das reservas dos aquíferos brasileiros. Logo depois, nomes do PSDB e de outros partidos “de centro” afirmaram se opor explicitamente à proposta de impeachment de Bolsonaro. Estes dois fatos levantam a pergunta acerca do sentido e utilidade da Frente Ampla: a quem interessa essa iniciativa, senão à direita, para fazer com que a esquerda acredite ser razoável esperar até 2022 para então eleger um João Dória ou Luciano Huck num grande acordo nacional? A segunda circunstância foi quando a Vaza Jato retornou depois de meses, sabe-se lá pela conveniência de qual agenda política, para revelar que a Lava Jato colaborou com o FBI e repassou ao governo americano informações sigilosas, numa clara demonstração de traição à Constituição e à Nação. Já suspeitávamos disso, mas agora as provas tornaram não apenas impossível à esquerda continuar sustentando uma posição parcial e ambígua em relação à Lava Jato e ao golpe, mas exigem que se posicione contra a cassação dos direitos políticos de Lula e pela anulação dos processos movidos contra ele. O que implica que a esquerda deveria reabilitá-lo como principal nome numa eventual eleição, caso não ocorra um autogolpe militar até lá. Mas, aposto, novamente farão vista grossa os nossos heroicos “democratas”. A terceira circunstância tem início na recente adesão da esquerda em solidariedade à morte de George Floyd, que levou a manifestações violentas nos EUA e pelo mundo afora. Rapidamente associou-se o fato, pela esquerda do Brasil, a Marielle. Mais de uma vez vi charges em que George Floyd chegava ao Céu para encontrar não Martin Luther King, Malcolm X ou tantos outros negros americanos mortos por policiais fascistas, mas no lugar deles, Marielle e outras vítimas brasileiras recentes. O que me levou a pensar: o que deveria ocorrer no Brasil para esta esquerda mostrar que de fato apoia e está disposta a fazer aqui pelos nossos o que fizeram os americanos pelos seus? E o fato aconteceu: um policial quebrou a perna e pisou no pescoço de uma mulher negra, pobre, favelada. Como Marielle? Talvez. Como Anderson? Amarildo? Com certeza. Mas alguém saiu às ruas ateando fogo em carros e prédios? Não. Em lugar disso, a fórmula mágica “Quem matou Marielle?” voltou à ordem do dia, para substituir a outra, agora que acharam Queiroz. E não vai dar em nada, nem num caso, nem no outro.
Eu não sei vocês, mas eu não sinto mais credibilidade por esta esquerda que se arvora a dizer para as massas se e quando devem se mobilizar por seus interesses. Que não devem usar a cor vermelha, falar em impeachment e até mesmo usar palavrões para atacar seus inimigos. Os recentes acontecimentos que descrevi acima não só serviram para revelar de forma inequívoca o caráter inautêntico do que se faz em política no Brasil e no mundo em geral, como produziram uma reviravolta em meu estado de ânimo e uma completa metamorfose nas conclusões desta reflexão, que se encaminhava para o matadouro numa marcha lenta e agora explode em chamas. Os intelectuais da esquerda devem ter conhecimento que o “retorno do recalcado” é tanto mais forte quanto mais violenta foi sua repressão. É como a terceira lei de Newton, aplicada ao aparelho psíquico: para cada ação, ocorre uma reação de igual intensidade e sentido oposto. Se as camadas que deveriam “pensar” pelas massas usam essa habilidade para contê-las, restará a estas agir de maneira impensada, instintivamente, violentamente. Como nas revoltas camponesas da Idade Média, nas quais os nobres eram empalados e assados em fogueiras como leitões. A violência se manifestará em explosões revolucionárias, em guerras civis canibais, em que comeremos os corações dos nossos inimigos, não como um ritual místico para incorporar sua força em respeito a sei lá quê; mas por puro ódio sem necessidade de justificativa. Como nas guerras civis da Indonésia e do Timor Leste, agora em 1999 e 2000. Nossos acadêmicos gostam de pensar que perdemos a capacidade de ser animalescos, que isso ficou pra trás e se ainda persiste, é monopólio da extrema-direita. Mas não é, está latente em todos nós, e nosso dia chegará. Eu quero, como fizeram os italianos com Mussolini e sua companheira, cuspir em seus corpos já mortos, chutar, atirar e urinar neles. Pode ser que eu morra antes disso, que não seja eu comendo o coração da burguesia brasileira, nem meus filhos ou netos, comendo os dos filhos ou netos deles; mas será outro Pedro aqui no Brasil, ou outro que existe na Indonésia, na Bolívia, em Botswana, na Ucrânia. E enfim teremos nosso Apocalipse laico, e neste Inferno agora repleto de fogo, sangue e ódio, numa erupção que reformatará o planeta, seremos não os condenados arrastados mas os próprios demônios. Eles não perdem por esperar.
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maanape
Eu sou alguém tentando aceitar a idéia de que vale a pena continuar vivendo sem ser Deus. E que é possível conhecer alguma felicidade assim. Sem criar maravilhas, sem condenar a castigos, sem quebrar selos que libertam pragas e realizam profecias. Sem salvar todos no final. Ser um homem, apenas. Entre tantos outros. Ver todos os artigos de maanape
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Originally published at http://fugadehanoi.wordpress.com on July 20, 2020.